O blog escreveu, dias passados, sobre alguns
detalhes que devem ser levados em considerações pelos pretensos candidatos à
Prefeitura de Mossoró, em caso de novas eleições. Meio mundo caiu sobre o
titular deste espaço. Cada um defendendo suas posições. Tal qual prevê a
própria Justiça, que se caracteriza pela bilateralidade, já que não se tem a
verdade plena.
Pois bem: eis que o advogado Paulo Linhares,
professor doutor da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN),
corroborou as palavras deste minúsculo espaço (ante às escritas ditas e tidas
como profundas e explicadoras). O texto de Linhares foi publicado no blog do
amigo jornalista Thurbay Rodrigues (www.thurbay.com). E o blog copia
e insere aqui para seus leitores:
Paulo Afonso Linhares
Uma leitura de há muito e
que me causou forte impacto foi um livro que veio a lume em 1931, intitulado
"Tecnica del colpo di Stato" ("Técnica do Golpe de Estado "),
do jornalista e escritor italiano Curzio Malaparte (então diretor do jornal La
Stampa, de Turim), em cujo texto explica as diferentes modalidades de golpe de
Estado, seja de esquerda ou de direita, de Lenin a Mussolini, ademais de
antecipar aquele que Hitler utilizaria para empalmar o poder na Alemanha. Nem
precisa dizer que em pouco tempo Malaparte, aliás, um gênio literário de muitas
aptidões, teve seu livro proibido em muitos países, inclusive na Itália e
Alemanha, pátrias de seus pais (era filho de pai alemão e mãe italiana, nascido
que foi em 09/06/1898).
Curzio Malaparte, cujo nome
verdadeiro era Kurt Erich Suckert, ao perfilar as várias técnicas de perpetrar
um golpe de Estado, objetivou dotar governos e, sobretudo, cidadãos, de
instrumento de defesa contra golpes, adotando medidas necessárias e até
antecipatórias para evitá-los. Com efeito, assevera Malaparte que "a arte
de defender um Estado é governada pelos mesmos princípios que regem a arte para
conquistá-lo" e com muita razão adverte que "a opinião pública nesses
países, nos quais é liberal e democrática, comete erro quando não se preocupa
com a possibilidade de um golpe de Estado." Doutro lado, ainda hoje se
afigura inusitada - e não menos verdadeira - a constatação de Malaparte
de que "o problema da conquista e defesa do Estado moderno, não é uma
questão política, mas técnica." Até Niccolò Machiavelli, o vetusto decano
dos pensadores da política, ficaria atordoado.
Importante é entender o
sentido da “técnica” aludida por Malatesta. Ora, atualmente a técnica não é
mais concebida apenas como “um conjunto de procedimentos que seguiam algumas
regras preestabelecidas para fazer algo em função de determinado fim”,
mas, como “uma forma de apropriação da natureza pelo homem, portanto, parte da
cultura”, segundo analisa Renato Somberg Pfeifer (disponível:
<http://bit.ly/1f2xVM5 > Acesso: 18 jan 2014). O pensamento contemporâneo
projeta como certeza a indissociabilidade entre as esferas morais - que
carregam um fim em si mesmas - e a dos instrumentos que, por definição, não têm
finalidade própria. Aliás, a técnica, como a ciência, que não são jamais
neutras e estão a serviço de determinadas estruturas sociais, permitem a
dominação de uma pessoa sobre outra ou que uma sociedade suplante (e até aniquile)
outra. No campo da política, esgotadas as decisões no terreno da
institucionalidade democrático-republicana (o resultado de uma eleição, por
exemplo), muitas vezes as disputas são levadas para outros patamares,
quando pessoas ou grupos – em ambos casos, sem esquecer a questão do partido
político – ultrapassam os lindes da legalidade/legitimidade e utilizam certos
recursos técnicos para resolver impasses político-institucionais que,
inclusive, podem implicar rompimento da ordem jurídica, parcial ou totalmente.
O golpe de Estado, nas suas múltiplas feições, é um destes.
Para usar o jargão da
tecnologia informacional, o golpe de Estado seria uma espécie de
"atalho" à exigência de legitimação do poder através de eleições
diretas, com voto universal e secreto, tudo como manda o rito elementar dessa
técnica - a democracia - que tem como azimute o princípio majoritário, ou seja,
deve prevalecer a decisão fruto do consenso da maioria dos (cidadãos)
eleitores, embora sem esmagar as posições minoritárias. Em suma, golpe de
Estado é a ilegal derrubada de um governo legitimamente constituído, seja por
métodos violentos, às vezes com uso extremo de força, seja pelo uso de
instituições jurídico-políticas do próprio Estado para defenestrar governo
legitimado por ato de soberania popular, neste caso é chamado de "golpe
branco" porque se caracteriza pela manutenção de um verniz legal e de
normalidade política. Na correta ótica de Malaparte (que significa "parte
má", em italiano, para contrapor a Bonaparte - "boa parte - sobrenome
de Napoleão), golpe de Estado é sempre a negação da democracia, embora a sua
perfeição se dê naqueles casos em que os aplausos majoritários dos cidadãos que
traduzam anseios por mudanças. Em resumo, o golpe de Estado é perfeito quando angaria
apoio majoritário da opinião pública.
Ora, se focalizarmos aquele
período imediatamente anterior ao golpe militar de 1964, no Brasil, é nítido o
apoio que os golpistas tiveram de setores importantes da população, a tirar
pela "Marcha da Família com Deus pela Liberdade", nome dado às
diversas manifestações públicas organizadas, em algumas cidades importantes,
por segmentos conservadores da sociedade brasileira contra o presidente João
Goulart, algumas chegando a congregar cerca de meio milhão de pessoas. O
resultado foi a quebra da ordem vigente, para iniciar um período de
obscurantismo ditatorial que se prolongou por 21 anos, num inventário de
cicatrizes que envolvem muitos mortos, desaparecidos e torturados.
Nas diversas fases da
história republicana, no Brasil, o golpe de Estado tem sido uma tentação
presente em todos os corações e mentes daqueles que têm exercido ou que anseiam
exercer o poder político. Aliás, nunca é demais lembrar a teoria formulada pelo
general Golbery do Couto e Silva, um dos condestáveis do regime militar
brasileiro instituído em 1964 e findo em 1985, para quem a democracia, nestes
prados tupiniquins, viveria no movimento pendular e constante de
"sístoles" e "diástoles", isto é, da alternância entre
períodos democráticos e autoritários. Claro, o ritual de passagem da democracia
para uma ditadura é sempre marcado por alguma das modalidades (ou técnicas) de
golpe de Estado, umas pacíficas e outras violentas. É de uma destas que a
presente reflexão se ocupa.
Bem mais insidiosa do que a
técnica do golpe de Estado que se esteia no apoio popular - o golpe perfeito,
segundo Malaparte, repita-se - talvez seja aquela que, de modo pacífico e quase
imperceptível, lança mão de instrumentos legais para se sobrepor à soberania popular
e destituir um governo (central, regional ou mesmo local) legitimamente
constituído. Num país em que o Congresso Nacional é omisso ou abre mão
expressamente de legislar sobre determinadas matérias, ademais da atuação de um
Poder Judiciário cada vez mais ativista e invasor de competências, tem-se um
bom caldo de cultura excelente para medrar a (nova) técnica do golpe de Estado
pela via judicial. Em que ela consiste?
Antes de qualquer coisa,
ressalte-se que Curzio Malaparte não conhecia ou ao menos não fala nessa
possibilidade de golpe de Estado no seu livro. Sem embargo, ela se caracteriza
por uma acendrada crença positivista na "infalibilidade" e
"incolumidade" dos organismos judiciários nacionais como intérpretes
e aplicadores do Direito. Algo assim como uma corporação de sacerdotes da deusa
Têmis, cujos membros exercem poderes extraordinários de suprimir, instituir ou
modificar direitos, de pessoas físicas ou de instituições, inclusive no que
toca às diversas formas de liberdade, todavia, sem qualquer legitimação pelo
voto de seus concidadãos.
Para combater os flagelos
que desnaturam a democracia, como o paternalismo, o clientelismo, os abusos do
poder econômico e político, a compra de votos, a nefasta ação dos demagogos e
vendilhões da pátria, foram adotados marcos regulatórios de severidade
draconiana que atribuem às instâncias da Justiça Eleitoral poderes para manter
a integridade e a eficiência do sistema eleitoral prefigurado na Constituição,
inclusive até com a cassação de mandatos eletivos, estes enquanto expressões
maiores do exercício da soberania popular. Entretanto, essa competência se
justificaria apenas em situações extremamente graves, jamais como prática
rotineira. Lastimavelmente, é o inverso do que vem ocorrendo: arvorando-se de
poderes que decerto não deveriam ter, juízes singulares e tribunais da Justiça
Eleitoral têm destituído governos e banido da vida pública lideranças, por
questões de somenos, bobagens e picuinhas, logo transformados em pecados
capitais que recebem o nome pomposo de "condutas vedadas".
A partir daí se abrem amplas
possibilidades de satisfação dos mais diversos interesses econômicos ou
políticos, estranhos aos fins da Justiça Eleitoral, esta que foi uma das
grandes conquistas da sociedade brasileira nos anos 30 do século XX e que
acabou com muitos dos enormes vícios do sistema eleitoral da Velha República,
sobretudo a malfadada "eleição a bico de pena" (nesse período era
comum que os resultados fossem alterados para atender aos interesses de grupos
políticos oligárquicos, com a alteração dos mapas eleitorais com uma espécie de
caneta, o bico de pena) ou o "voto marmita" (o eleitor já levava em
envelopes as cédulas eleitorais impressas por candidatos e partidos, que eram
depositados nas urnas de pano e, na maioria dos casos, sequer suspeitava quais
eram os candidatos em que estava a votar, pois recebia o envelope lacrado das
mãos de algum chefete político...), isto para ficar apenas em dois exemplos.
Cada vez melhor aparelhada,
inclusive contando com um dos melhores sistemas informacionais do mundo, em
matéria de cadastro eleitoral e de processamento eletrônico eleições
(e-Voting), a Justiça Eleitoral tem avançado, também, na tomada de contas de
partidos e candidatos, com a obrigatoriedade do lançamento "on line"
de receitas e despesas, tudo para combater os diversas graves vícios que ainda
permeiam os processos eleitorais, como os abusos de poder político e
econômico, a compra de votos, a propaganda ilícita e outras condutas vedadas que
influenciam os resultados das eleições e desviam a livre manifestação do
corpo eleitoral. No entanto, o objetivo da legislação eleitoral não é jamais
transformar os juízos (singular ou colegiado) eleitorais em xerifes implacáveis
desses processos, nem supremos substitutos da soberania popular de que fala o
art. 14 da Constituição. Lamentavelmente, algumas formas exacerbadas de
ativismo têm levado magistrados a prolatar decisões (em caráter
"originário" ou "confirmatório") que extrapolam em muito àquilo
que se entende no universo jurídico como "razoabilidade" na
interpretação e aplicação do direito.
Claro que esses excessos nos
julgamentos de processos, no campo do Direito Eleitoral, não seriam apenas
meros desvios no plano da subjetividade dos julgadores, mas, resultantes de um
conjunto complexo de motivações que vão desde as opções filosóficas,
ideológicas, políticas ou psicológicas, até aquelas que revelam um conjunto de
vícios funcionais, inclusive alguns casos aberrantes de corrupção traduzidos,
para maior vergonha, na aberta venda de decisões judiciais e outras barganhas
impublicáveis, algumas delas enquadráveis naquilo que declarou o
presidente do Conselho Nacional de Justiça e do Supremo Tribunal Federal,
ministro Joaquim Barbosa, “ad verecundiam” como diziam os antigos
jurisprudentes, sobre o promíscuo conluio entre juízes e advogados: “Há muitos
(juízes) para colocar para fora. Esse conluio entre juízes e advogados é o que
há de mais pernicioso. Nós sabemos que há decisões graciosas, condescendentes,
absolutamente fora das regras.” Pano rápido.
Decisões maculadas pela
graciosidade ou condescendência, “absolutamente fora das regras”, que impliquem
destituição de um governo municipal, estadual ou federal legitimamente
constituído não tem outro nome senão golpe de Estado pela via judicial. E têm
ocorrido “aos montes” neste país-continente, sem que, aliás, a sociedade, a
imprensa ou mesmo as autoridades se apercebam da enorme gravidade que
constituem essas violações aos vereditos que emanam da soberania popular, nos
processos eleitorais, gerando instabilidade institucional, incerteza e
insegurança jurídicas. A substituição da soberania popular por uma decisão
judicial há de ser sempre e sempre para preservar aquela, jamais para olvidá-la.
Diante de uma violação
flagrante e ilícita da soberania popular, mediante golpe de Estado pela via
judicial, as pessoas e instituições sociais não podem entendê-la como um estado
de normalidade, pois é como aceitar aquela história da “banalização do mal” de
que fala Hannah Arendt. E no albor de mais um processo de eleições (quase)
gerais, no Brasil, neste ano de 2014, é fundamental a conscientização de que as
violações da soberania popular transmudadas em verdadeiros golpes de Estado
pela via judicial são intoleráveis tanto quanto as condutas vedadas ou
delitivas praticadas por candidatos, eleitores ou autoridades, que infirmam os
processos eleitorais e agridem o regime democrático e a ordem republicana.
Assim, quem quiser concorrer
às próximas eleições deve colocar – se as tiver – as barbas de molho. Dona
Dilma Rousseff, afigurada em todas as sondagens de opinião pública com
vencedora da próxima eleição presidencial, deve ter muito cuidado com quem e
como anda, o quê e onde fala. Por qualquer vacilo pode perder o mandato. Na
certa, um golpe branco: os processos, as sessões-espetáculo do TSE ou do STF,
as oligarquias das comunicações a apostar suas fichas a narcotizar a opinião
pública com muitas e repetidas inverdades. Os perdedores de todos os naipes
estarão sempre dispostos a buscar modificação de reveses eleitorais no
“tapetão”. E não falta juiz querendo brincar de Deus e, nas asas do ativismo,
tentado sempre a buscar aquele "ponto fora da curva": a técnica do
golpe de Estado pela via judicial. Por fim, uma coisa é insofismável: aqueles
que são tentados a substituir ilegitimamente a soberania popular não vão
desistir facilmente. Nem nós desistiremos de denunciá-los. O alerta está
feito.
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